Trata-se da parábola do filho perdido. Eu sei que já tem
lido e escutado dezenas de sermões sobre o assunto, cada qual com um enfoque
mais ou menos diferente. Há tantos modos de se pensar neste texto. Estes modos
podem nos desafiar ou desanimar. Por outro lado queremos saber, afinal, qual é
o significado exato do que Jesus desejou dizer, por outro lado quase desistimos
quando descobrimos que o amor de um pai para com o filho é um caminho na vida
que não pode ser entrincheirado.
Houve um tempo quando se pensou que cada parábola de Jesus
deveria ser interpretada pelo seu sentido mais geral, um significado abrangente
que pudesse lhe dar “unidade”. Isto se tornou válido até quando se descobriu
que Jesus as interpretou não tão genericamente assim, como no caso da conhecida
parábola do semeador. Nela, Jesus discorre sobre os vários tipos de solos,
dando a cada um o seu significado, de tal modo que não sabemos se a parábola
enfatiza o semeador, se os solos, ou se a própria palavra semeada. A ausência
de resposta não deixa de ser uma resposta, e faz a gente imaginar um semeador
lançando as sementes num dia de sol.
A parábola do filho perdido não é diferente. Um dos maiores
estudiosos sobre as parábolas de Jesus, Joachim Jeremias, vê nela o amor do
Pai. Sua interpretação, porém, enfatiza a natureza individual, quando uma
pessoa, como outra qualquer, se afasta do aconchego e abrigo do Pai e decide
voltar para casa.
É claro que se você entende assim, está em boa companhia,
boa mesmo! Contudo, gostaria de pensar no amor para quem não merece ser amado,
numa dimensão um pouco mais ampla. Gostaria de pensar num amor a um mundo que
não merece o Senhor, que, como um pai, fica a olhar a silhueta de quem volta
para casa num entardecer já escuro.
Não preciso me deter a dizer que Lucas era gentio. Isto todo
mundo sabe. Também não é preciso dizer que um dos seus temas é o abrigo de Deus
aos marginalizados; o que também já se sabe. Assim, não seria absurdo se
compreendêssemos esta parábola como uma metáfora, entre uma comunidade que
sempre esteve com Deus, a nação judaica, e os que dela se apartaram, os
gentios; no caso, os gregos, ou atualizando, o mundo perdido, que come os
restos dos porcos. Mundo que, de alguma forma, tem uma saudade de um “lugar” que
não está ali.
A narrativa poderia ser assim:
Numa época, bem remota, houve um filho que negou o seu estado de filiação (gentios). Não poderia, mas resolveu ir embora. Fascinado com uma outra vida, um outro mundo, numa nova liberdade. Sonhara que deveria ter outros caminhos, acordar pela manhã e ver outras árvores, outras terras, outros campos e outras pessoas, que não o pai, que não o irmão (judeus). Resolvera ir e foi. Ele era o filho mais moço; não o que receberia a herança genealógica e que daria continuidade à nação. Por causa disto, talvez, resolvera ir e foi. Foi para um lugar viver sem o pai, viver sem Deus, viver sem sentido. Viveu num lugar qualquer chamado de, simplesmente, “lá”. No “lugar lá” passou fome, coisa que nunca tinha sentido antes. Como judeu (que negara a condição de...), cuidou de porcos e chegou ao limite da degradação humana. Comeu com os porcos, e um dia desejou voltar para casa. Não merecia voltar, mas voltou. Não voltou porque talvez tivesse direitos, mas voltou exatamente porque nada tinha. Nada poderia exigir. O único caminho era o arrependimento. Reconheceu que já não era filho, e não era mesmo. Reconheceu que o seu problema havia sido o pecado, e havia sido mesmo. Resolveu voltar para casa, quando o tempo do dia já estava se findando, momento quando os trabalhadores e o “irmão”, que já não era irmão, voltava para casa. Naquela tarde escura, um filho que já não era mais filho, volta para um pai, que já não era o seu pai, a viver numa casa, que já não era a sua, a um “irmão” que não o queria. Era este irmão, que não o queria, que precisava aprender: “Assim é Deus”: onde havia morte, desesperança ou falta de sentido, estado de perdição e abandono, ainda restava o Pai que o aguardava todas as tardes, como se fosse a última.
Assim é Deus. Talvez não compreendamos direito o sentido de
uma nação filiada a Deus, por vocação e nascimento, aceitar a intromissão de um
quase “bastardo”, filho da perdição, filho que não é filho, irmão que não é
irmão, gente que não é gente, sendo recolhido no mesmo teto e sendo amado do
mesmo jeito. Acho que não sabemos o que seria exatamente isto. Nós nos
identificamos como o filho que foi embora, que nada merecia, e que de tudo
precisava. Sabemos o que significa viver como porcos, pois já estivemos lá.
Também passamos fome e perdemos o sentido da vida. Um dia o Senhor nos esperou
numa estrada, e era tarde. Só que esquecemos, e já não nos lembramos de que
“Assim é Deus”. Abrir os braços para os gregos era o absurdo, impossível,
inexplicável, injustificável, incompreensível, inusitado, desnecessário,
injusto, impuro, desprezível, insensato, imerecido, o limite da imprudência, e
desrespeito à história.
Dizia Lucas: Deus é assim: é o amor que espera todas as
tardes no caminho; é alegria que recebe quem não deveria ter partido; ama quem
não merece ser amado; perdoa aquele que não merece ser perdoado. Absurdamente
ama, impossivelmente ama, inexplicavelmente ama, ama sem justificativa,
incompreensivelmente ama, inusitadamente ama, desnecessariamente ama, injustamente
ama; ama o impuro, ama o desprezível, ama o insensato, ama o imerecido. Além do
limite da prudência e da história, ama.
Dizia Lucas: Assim é Deus.
Pr. Natanael Gabriel Da Silva (2004).
Pr. Natanael Gabriel Da Silva (2004).